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O BUDISMO: O TERCEIRO PILAR DO PENSAMENTO CHINES

A filosofia budista é o terceiro pilar do pensamento chinês, junto com o Taoismo e Confucionismo, que nasceu no século VI ou V AC na Índia com um homem conhecido como Siddharta Gautama. O Prof. Dr. Ricardo Gonçalves, do Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo resume a vida de Buda:

 

“ Siddharta Gautama nasceu em data ignorada, provavelmente em meados do século VI A C, em Kapilavastu, no sopé do Himalaia, em território do atual Nepal. Era filho de Sudhodhana, nobre pertencente a assembléia que governava a pequena tribo dos saquias, tributária do vizinho reino de Kosala. Ele deveria herdar o cargo paterno, mas, ao completar 29 anos preocupado com problema do sofrimento humano e desejoso de encontrar um método para subjulgá-lo, abandonou a vida mundana e se tornou discípulo dos ascetas Alara Kalama e Uddaka Ramaputta, exercitando-se nas práticas das iogas preconizadas por estes mestres. Entretanto, tais práticas não o satisfizeram. Deixou então os mestres e praticou mortificações por seis anos. Ao cabo deste tempo foi levado a concluir que todos estes exercícios eram inúteis e imaginou então um novo método, passando a praticar meditação a sombra de uma arvore em Buddhagaya.Graças a esta meditação, logrou resolver todas as duvidas, realizando a experiência de iluminação ou satori, que consiste em obter o conhecimento correto de si mesmo e de todas as coisas. Procurando transmitir sua vivencia a outros, conseguiu reunir grande numero de simpatizantes e discípulos, antes de morrer com 80 anos.”(Gonçalves, 1992: 12)

 

Após a iluminação o Buda, o desperto ou iluminado, passou a pregar as “Quatro Nobres Verdades”. As eternas “Verdades” que são as concepções  centrais de seus ensinamentos:

 

“I -A Verdade de que toda a vida sensível envolve sofrimento.

II-A Verdade de que a causa dos repetidos renascimentos e sofrimentos

é a ignorância, associado ao desejo.

III-A Verdade que este processo de nascimento, morte e sofrimento pode

ser levado para um fim somente com a obtenção do Nirvana.

IV-A Verdade de que o Nirvana pode ser alcançado seguindo-se com per-

feição o Nobre Caminho Óctuplo que abrange Sila, Samadhi e Panna,

Isto é moralidade, meditação e compreensão intuitiva.

 

A Quarta Nobre Verdade do Budismo é conhecida como Caminho Óctuplo, que se compõe do seguinte:

 

  1. Palavra Correta
  2. Ação correta
  3. Meio de Vida Correto
  4. Esforço (mental) Correto
  5. Atenção Correta
  6. Concentração Correta
  7. Pensamento Correto
  8. Compreensão Correta” (Silva, 1978: 12)

 

O pensamento de Buda foi bem acolhido na China durante a dinastia Han e influenciou as escolas de filosofia chinesa. Associado a filosofia de Buda chegou a China  antiga a medicina budista, que segundo a tradição teve como pioneiro o próprio medico de Buda:  Dr. Jivaka no século V A C. O professor Ricardo Gonçalves coloca:

O Budismo foi pregado pela primeira vez na China nas primeiras décadas do seculo I da era cristã, durante a Segunda Dinastia de Han. Cerca de dois séculos antes os chineses, tinham começado a controlar as rotas de comércio da Ásia Central, conhecida como Caminho da Seda. Foi por este caminho e pelas rotas de comércio marítimo que o Budismo entrou na China, trazido por monges e mercadores oriundos da Índia e de reinos da Ásia central convertidos a lei de Buda. Pelas mesmas rotas, entraram na China os textos Budistas indianos, que foram traduzidos para o chinês por uma brilhante plêiade de monges tradutores, indianos, iranianos e mesmo chineses, que faziam longas peregrinações a Índia em busca de textos para traduzir.”  ( Gonçalves, 1992: 23)

 

A medicina budista afirma que existem quatro elementos que compõem o corpo humano. O Ratnakuta, traduzido para o chinês no segundo século da era cristã, afirma:

 

“1- A terra abrange tudo que é sólido no corpo humano…

2- A água abrange tudo que é liquido no corpo humano…

3- O fogo abrange tudo que é quente no corpo humano…

4- O vento abrange tudo que é movimento no corpo humano”

(Unschuld,1985:141)

 

A doença surge quando um ou mais destes quatro elementos aumenta ou diminui excessivamente. Esta afirmação da medicina budista é idêntica a do Ayurveda, a clássica medicina Indiana, com a diferença que no Ayurveda existe um quinto elemento que é o espaço ou éter.

A estrutura filosófica da medicina budista sofreu nas mãos dos tradutores chineses. houve interpretações equivocadas e muito pouco da literatura encontrou identificação no acervo cultural chinês.O prof. Paul Unschuld coloca que há tantas obras chinesas que ainda não foram examinadas que não será surpresa se ainda ocorrer uma influencia budista.

Hua to e Sun Si-miao ( 581 a 682D C) são citados como exemplos da influencia budista na Medicina Chinesa. Porem os esforços de Sun Si-miao em organizar a doutrina budista dos quatro elementos nas mesmas bases do paradigma do Qi, não foram suficientes para obter seguidores, talvez pelos erros matemáticos contidos na sua explicação. A falta de evolução e de seguidores nas técnicas de anestesia e cirurgia de Hua To ficaram sem explicação histórica. Uma possibilidade é que como sua história é muito semelhante a do médico indiano Jivaka, considerado o médico do próprio Buda, que Hua To seja uma fábula importada da Índia junto com o Budismo.

 

Prof. Dr. Aderson Moreira da Rocha

Médico de família, reumatologista, especialista em acupuntura pela Associação Médica Brasileira e especialista em Ayurveda pelo Arya Vaidya Pharmacy e Associação Brasileira de Ayurveda. Mestre e doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.

A ESCOLA DO YIN–YANG

A teoria do Yin-Yang é tão antiga que muitas vezes confunde-se com a história da própria China. É difícil precisar exatamente quando surgiu pela primeira vez este pensamento, porém  Marcel Granet em “O Pensamento Chinês” relaciona as primeiras referências ao Yin-Yang  ao I-Ching:

“Não surpreende, portanto, constatar (levemos em conta aqui os acasos que regeram a conservação dos documentos) que as mais antigas exposições  conhecidas sobre o Yin-Yang estão contidas no Hi Zi, pequeno tratado anexado ao I Ching (o único manual de adivinhação que não se perdeu). Tampouco surpreende que o autor do Hi Zi fale do Yin-Yang sem pensar em dar uma definição deles. Na verdade basta lê-lo sem preconceitos para perceber que ele procede por alusão a idéias conhecidas. Veremos, inclusive, que o único aforismo contendo as palavras Yin e Yang em que podemos adivinhar a ideia que ele fazia destes símbolos aparece como uma fórmula pronta, um verdadeiro adágio: aliás, é nesse fato que reside a única possibilidade que nos é dada de conseguir interpretar este aforismo.

“Uma (vez) Yin, uma (vez) Yang ( yi Yin yi Yang), nisso está o Tao”, escreve o Hi Zi. Todo este adágio tem que ser adivinhado. A tradução mais literal corre o risco de falsear-lhe o sentido. A que acabo de fornecer já é tendenciosa sugere a interpretação: “um tempo de Yin, um tempo de Yang…” Sem dúvida existe a possibilidade de que o autor preocupado com a adivinhação encare as coisas do ponto de vista do tempo; entretanto, tomada em si, a fórmula poderia igualmente ler-se: “um ( lado) Yin, um (lado) Yang…” (Granet, 1997: 85)

O I Ching, livro das mutações, seria a referência mais antiga a teoria do Yin-Yang mas quando surgiu este antigo “oráculo chinês”, que foi dividido em 64 hexagramas  Richard Wihelm afirma:

“Segundo a tradição geralmente aceita, sobre a qual não temos motivo para levantar suspeitas, a atual compilação dos sessenta e quatro hexagramas teve sua origem com o Rei Wen, antecessor da dinastia Zhou. Diz-se que ele acrescentou breves julgamentos aos hexagramas durante o período que estava aprisionado por ordem do tirano Chou Hsin. O texto relativo as linhas foi redigido por seu filho, o Duque de Chou. Sob esta forma, com o título de “As Mutações de Chou”( Chou I ) foi usado como oráculo durante o período da dinastia Zhou como demonstram vários antigos registros históricos.” (Wilhem, 1983:11)

Apesar de Wilhelm colocar o I-Ching na época anterior a dinastia Zhou, Alaíde Mutzenbecher em seu trabalho sobre o I-Ching vai além:

“Composto apenas de duas forças, opostas e complementares, reconhecidas como primordiais desde o assentamento dos primeiros grupos tribais as margens do Rio Amarelo, no alvorecer da civilização chinesa, o fluxo do Yin-Yang admiravelmente sintetizado nas seis linhas ou etapas de cada hexagrama se constituía então dos traços impressos nas carapaças das tartarugas ou nos ossos dos animais. Impossível iniciar uma data que os chineses iniciaram a captação desta dinâmica energética. O par de forças inaugurais nas suas concatenadas variações, forma uma totalidade de possibilidades ( 8 x 8 ) resultando nos 64 hexagramas. Configura as energias vigentes entre céu e terra, codificadas apenas por linhas, em que as inteiras são denominadas Yang ______ e as partidas Yin ____ bem como todas as composições delas decorrentes. Tudo se resume em última instância, a malha de conexões dos pólos positivo e negativo, em todas as suas variações possíveis. Este foi também o texto fundador das ciências e das artes chinesas, incluindo as percepções das vibrações do corpo humano, ressaltadas na sua medicina, e dos espaços e construções habitados, enfatizadas no Feng Shui. Este mesmo fluxo energético constitui as bases da caligrafia a da pintura chinesa, e de todas as artes marciais do oriente. As implicações das mútuas repercussões dos pólos positivo Yang e negativo Yin constam das ciências mais modernas, pois se evidenciam na dinâmica da eletricidade e dos computadores, para citar apenas dois exemplos.“ (Mutzenbecher, 2002: 12 e 13)

Originalmente os ideogramas que representavam o Yin e o Yang significavam o lado escuro e o lado claro de uma montanha respectivamente. No Shih-Ching, uma coleção de canções populares do primeiro milênio a.C. faz a seguinte associação:

“O Yin está associado aqui com o frio, nublado, chuva, feminino, dentro e escuridão, enquanto o Yang simboliza uma linha de correspondência associada com: o brilho do sol, calor, primavera, verão e masculino.” (Unshuld,1985:55)

Na doutrina do Yin-Yang os termos Yin e Yang não apresentam nenhum significado específico, eles funcionam como símbolos utilizados para caracterizar duas linhas de correspondência. No Zouzhuan, comentário de Zou, uma crônica do período Zhou atribuída A Yi He, que teria vivido por volta do ano 540 A C observamos a aplicação da teoria do Yin-Yang a medicina:

“As seis influências são yin, yang, o vento, a chuva, a escuridão e a luz… um excesso de yin causa calafrios; um excesso de yang causa febre, um excesso de vento causa enfermidades nos membros; um excesso de chuva causa enfermidade no estômago; um excesso de escuridão afeta a mente; um excesso de luz afeta os sentimentos.”(Hoize e Hoize, 1993: 88)

Nesta afirmação de Yi He, médico durante a dinastia Zhou, observamos a importante utilização da medicina de correspondência sistemática aplicada as mudanças climáticas e a teoria do Yin-Yang. Yin Hui He e Zhang Bai Ne resumem a lei da oposição e restrição do Yin-Yang no seguinte parágrafo:

“A teoria do Yin e do Yang considera que qualquer objeto ou qualquer manifestação do mundo material está incluso no antagonismo complementar dos dois aspectos Yin e Yang, como o em cima e o embaixo, a direita e a esquerda, o céu e a terra,o movimento e o repouso, a saída e a entrada, o dia e a noite, o claro e o escuro, o frio e o quente, a água e o fogo etc. O Yin e o Yang enquanto antagônicos formam uma unidade que é por sua vez resultado deste antagonismo. Em outras palavras o antagonismo entre os dois em um aspecto de oposição e a unidade dos dois tem aspecto da complementaridade. Se não há antagonismo, não há unidade. Se não há oposição, também não há complementaridade. A principal manifestação característica do antagonismo complementar entre Yin e Yang é a mútua restrição. O resultado é que o Yin e o Yang alcançam a unidade no equilíbrio dinâmico denominado: o Yin floresce suavemente e o Yang estimula firmemente. Nas variações climáticas entre o morno, o calor, o fresco e o frio das quatro estações, o morno e o calor da primavera e do verão acontecem enquanto a energia Yang aumenta gradativamente, inibindo a energia fria e fresca do outono e inverno. O frio e fresco do outono e inverno acontecem enquanto a energia Yin aumenta gradativamente, inibindo a energia quente e morna da primavera e do verão. Isto é o resultado da mútua inibição e do equilíbrio dinâmico existente entre o Yin e o Yang da natureza.”  ( He e Ne, 1999: 19)

Esta colocação de Yin Hui He e Zhang Bai Ne resume a alternância e a complementaridade do Yin-Yang na natureza. Mas a medicina de correspondência sistemática utilizou, principalmente a partir do século V A C, a teoria do Yin-Yang aplicada as enfermidades. Com relação a aplicação do Yin-Yang a medicina Maciocia afirma:

“Poder-se-ia dizer que a Medicina Chinesa como um todo, sua fisiologia, patologia, diagnóstico, e tratamento, podem ser reduzidos a teoria básica e fundamental do Yin e do Yang. Todo processo fisiológico e todo sintoma ou sinal podem ser analisados sob a ótica da teoria do Yin-Yang. Cada parte do corpo humano apresenta um caráter predominantemente Yin ou Yang, muito importante na prática clínica. Deve-se enfatizar todavia que este caráter é somente relativo. Por exemplo, a área torácica é Yang em relação ao abdome (por ser mais alta), mas Yin em relação a cabeça.

Os caracteres Yin e Yang das estruturas corporais  são :

Yang                                                       Yin

Superior                                                  Inferior

Exterior                                                   Interior

Superfície póstero-lateral            Superfície antero-medial

Costas                                                       Frente

Função                                                      Estrutura

Cabeça                                                     Corpo

Exterior (pele-músculos)               Interior ( órgãos )

Acima da cintura                                Abaixo da cintura

Função dos órgãos                             Estrutura dos órgãos

Qi                                                                 Sangue”

(Maciocia, 1996:9)

 

A medicina de correspondência sistemática apresenta além da teoria do Yin-Yang mais três conceitos que são fundamentais dentro do seu desenvolvimento como uma racionalidade médica: As 5 fases , também chamadas de 5 elementos ou movimentos ( wu xing ), a teoria do Qi e os meridianos chineses ( jing luo ). Iremos analisar cada uma destas teorias que compõem a racionalidade médica chinesa nos primórdios de seu desenvolvimento histórico.

O CONFUCIONISMO

Durante a dinastia Zhou, no século VI a. C, surgiu na China a primeira das 3 escolas clássicas do pensamento chinês, a saber: confucionismo, taoísmo e budismo. O fundador do confucionismo, Gong Qiu, viveu de 551 a 479  A.C., ficou conhecido no ocidente pela latinização de seu nome: Confúcio. Conta a lenda que nascido em uma castas de nobres pertencentes a uma classe inferior ascendeu de posição e se tornou o primeiro ministro. Porém ficou decepcionado com a depravação do soberano e desistiu de sua posição para vagar na companhia de seus discípulos buscando um lugar que pudesse aplicar sua filosofia.

     Segundo Confúcio, a força Te, que em eras antigas relacionava-se com influencias mágicas, agora emanava da conduta moral impecável baseada na virtude humana, piedade e justiça do homem superior. O homem superior não estava mais determinado automaticamente pelo nascimento, mas pela aquisição de certas qualidades. Confúcio acreditava na habilidade inata do homem de aprender e achava necessário que o príncipe deveria ser a pessoa que melhor incorporava a virtude. Uma das mais importantes afirmações da filosofia de Confúcio, que relaciona-se diretamente com a Medicina Chinesa de correspondências sistemáticas ( teoria do yin-yang e 5 fases),  era que o excesso em qualquer área quebra a ordem social e deve portanto ser evitado.

O trabalho de Hsun Tzu ( 238  a. C.), seguidor de Confúcio,  merece especial atenção, pois revela claramente a relação entre o confucionismo e a Medicina Chinesa de correspondência sistemática, que posteriormente formularia a teoria do yin-yang e das 5 fases, foram descritas pela primeira vez no Huang Ti Nei Ching ( o livro clássico da medicina interna do Imperador Amarelo) no século II   a.C.. Hsun Tzu afirma:

“O verdadeiro governante começa a colocar o seu estado em ordem quando a ordem ainda prevalece; ele não espera que as insurreições já tenham eclodido.” ( Hsun Tzu em Unschuld, 1985: p.63)

 

No livro clássico de medicina interna do Imperador Amarelo ( Huang Ti Nei Ching ) existe uma passagem muito semelhante a esta afirmação de Huan Tzu, demonstrando a importancia da filosofia de Confúcio no desenvolvimento do pensamento médico chinês:

“ Os sábios não tratam aqueles que já caíram doentes, mas aqueles que não estão doentes. Eles não colocam o seu estado em ordem apenas quando a revolta esta em desenvolvimento mas antes de ocorrer a insurreição. (Huang-Ti Nei Ching Su Wen, em Unschuld, 1985: p 63)

          O sábio Hsun Tzu ensinava que cada ser humano pode elevar-se a um grande estado de moralidade através do estudo dos livros clássicos e levando os costumes seriamente. Nos seus escritos afirmava:

“Se a pessoa utiliza seu corpo e sua natureza , seu discernimento, entendimento e deliberação com o senso apurado, da maneira como o costume recomenda, seguir-se-ão a ordem e o sucesso, caso contrario, o resultado é a imprecisão e a sublevação, ociosidade e indisciplina. Se o consumo de comida ou bebidas, o vestuário, os alojamentos dentro e fora de casa, assim como o movimento e o descanso são cumpridos de maneira como o costume recomenda, atingir-se-á harmonia e ordem; caso contrario para o que não cumpre este estará sujeito ao ataque e a traição, e a doença ocorrerá.”  ( Hsun Tzu em Birch e Felt, 2002: p. 11)

Apesar dos ensinamentos de Confúcio serem eminentemente práticos a realização deles por uma pessoa comum não é nada fácil. Como disse certa vez o próprio Confúcio:

 

“Eu nunca vi alguém que realmente amava a humanidade ou alguém que odiava a desumanidade. Alguém que realmente ama a humanidade não colocará nada acima disto, alguém que realmente odeia a desumanidade irá praticar a humanidade de tal maneira que a desumanidade não terá chance de alcançá-lo. Existe alguém que consagrou sua força a humanidade durante apenas um dia? Eu não encontrei ninguém com a suficiente força para fazer isto. Talvez exista esta pessoa mas eu não a vi.”(Shu Hsien Liu, em Bishop ed., 1995:p. 21)

O processo educacional que Confúcio experimentou durante a sua vida é extremamente interessante. Nas palavras de Confúcio:

“Aos 15 anos minha mente estava firme no aprendizado. Aos 30 anos o meu caráter estava formado. Aos 40 eu não tinha mais perplexidades. Aos 50 eu sabia o “Mandato dos Céus”(Tien Ming). Aos 60 eu estava confortável com tudo que eu ouvia e aos 70 eu podia seguir os desejos do meu coração sem transgredir ao princípios morais” ( Shu Hsien Liu, em Bishop ed., 1995: 22)

A filosofia confucionista teve uma grande influencia no pensamento da Medicina  Chinesa. Pois o conceito do homem superior, desenvolvido por Confúcio, veio trazer um ideal de ser humano que foi utilizado a partir de então na antiga tradição médica da China. Podemos encontrar as raízes do desenvolvimento da medicina chinesa de correspondência- sistemática, baseada na teoria do yin-yang e das 5 fases, nos escritos de Confúcio:

“Um erudito determinado e um homem de humanidade nunca irá procurar viver as custas do prejuízo da humanidade. Ele poderia sacrificar a sua vida a fim de realizar  a humanidade.” (Shu Hsien Liu, em Bishop ed, 1995:p.  22)

 

A partir do século V A.C. a escola confucionista foi a filosofia que veio transformar todo o pensamento chinês que antes era baseado na escola Shamanista ou mágico-demo-

nologica. Nas palavras do próprio Confúcio:

“Devote a si mesmo, zelosamente, as obrigações com os homens, e respeite os seres espirituais mas mantenha-os a distancia. Isto pode ser chamado de sabedoria.”(Shu Hsien Liu, em Bishop ed , 1995: 23)

No seu trabalho “ A History of Chinese Philosophy” Fung Yu Lan coloca:

“Eu, portanto, afirmaria que:

 

  1. Confúcio foi o primeiro homem na China a fazer do magistério sua profissão, então popularizou a cultura e a educação. Foi ele que abriu o caminho para os muitos eruditos e filósofos viajantes dos séculos seguintes. Foi, também, ele que inaugurou, ou ao menos desenvolveu, esta classe de cavalheiros na China antiga que não eram fazendeiros, artesãos, comerciantes nem funcionários públicos, mas eram professores profissionais e potencialmente funcionários públicos.
  2. As atividades de Confúcio, eram semelhantes, em muitas maneiras aquelas dos  Sofistas Gregos.
  3. As atividades de Confúcio e sua influencia na história chinesa foram semelhantes àquela de Sócrates no ocidente.” (Fung Yu Lan, 1994: 48 e 49)

 

No livro “ Entendendo a Acupuntura” dos pesquisadores Birch e Felt encontra-se a seguinte colocação:

“De certa forma podemos afirmar que o confucionismo restabeleceu a antiga ordem moral em que se supunha que um soberano e seus ministros tinham a competência em garantir o bem estar de todos, usando seu elo com o sobrenatural. No entanto, em vez de atribuir essa competência ao contato exclusivo com as divindades, Confúcio atribuía a conduta moral imparcial”. (Birch e Felt, 2002: 11)

     A transformação dos hábitos comportamentais e das instituições sociais decorrente da absorção de novos pontos de vista é outra característica da China que se repete por toda a sua história. Portanto foi natural que o elo  do pensamento da escola confucionista entre o comportamento humano e os resultados sociais se expressasse paralelamente no desenvolvimento da medicina e que a linguagem medica adquirisse a conotação dos conceitos antigos pois os ideogramas haviam sido feitos em função destes conceitos.

A teoria da medicina de correspondência sistemática afirma que as direções e tendências da vida estão sujeitas a intervenção humana inteligente e ou comportamento individual adequado. Aqueles que acreditavam, na China antiga, que a doença seja desagrado de um agente sobrenatural normalmente não buscavam a causa da enfermidade no seu comportamento ou nos fenômenos chamados naturais.  A mudança de paradigma de uma medicina mágico-demonológica baseada em fenômenos sobrenaturais para a medicina de correspondência sistemática com raízes na observação dos fenômenos naturais teve como pedra angular a filosofia de Confúcio pois esta enfatizava a moderação no comer,, beber,  dormir e  afirmava de que a doença entra pela boca. Certa vez o filósofo fez a seguinte afirmação:

“ Um Homem sem persistência não será nem um adivinho nem um médico”  (Fu Yu Lan, 1994:p. 65)

Podemos observar neste momento histórico, século V A.C., uma importante transformação no conceito de doença/cura, pois aquilo que antes era tratado pelas oferendas aos ancestrais ou por rituais e exorcismos através de fenômenos sobrenaturais passou a ser  abordado pela mudança de comportamento com um tom moral muito particular devido a influencia do confucionismo. As mudanças neste período histórico levaram os autores Birch e Felt a afirmarem:

“O período final da dinastia Zhou é conhecido como a época dos “Estados Combatentes”, ( 480 a 221 A C) foi quando houve a dissolução final do feudalismo chinês através de disputas sangrentas entre os grandes e pequenos principados. Neste grande conflito armado todos os traços do “cavalheirismo feudal” foram esquecidos já que a regra era guerrear até o fim. Os reis perderam a sua importância e haviam se tornado mais uma peça a ser removida. Neste período a filosofia era que os camponeses deveriam se dedicar ao cultivo da agricultura e a fazer uso das armas. Apesar desta ser uma das épocas mais violentas da historia da China, houve no final deste período a consolidação de um império na China através do monarca Qin que abriu caminho para a cultura chinesa alcançar um dos seus períodos de maior desenvolvimento”. ( Birch e Felt, 2002 :12 )

Nesta lista abaixo, Unchuld, coloca os principais paradigmas e sub-paradigmas do desenvolvimento histórico da Medicina Chinesa.

1-  O paradigma da relação de causa e efeito entre fenômenos correspondentes.

1.1 Causação através da correspondência mágica

1.1.1. Mágica Homeopática

1.1.2    Mágica por contato

1.2 Causação através da Correspondência Sistemática

1.2.1    Correspondência do Yin/Yang

1.2.2    Correspondência das 5 fases

 

  1.  O paradigma da relação de causa e efeito entre fenômenos não correspondentes.

2.1 Causação através da intervenção de fenômenos supranaturais

2.1.1 Ancestrais

2.1.2 Espiritos e demônios

2.1.3 Deuses

2.1.4 Leis transcendentais

2.2 Causação através de influencia de fenômenos naturais

2.2.1 Alimentos e bebidas

2.2.2 Ar e vento

2.2.3 Neve e umidade

2.2.4 Calor e frio

2.2.5 Influencias materiais sutis

2.2.6 Parasitas, vírus, bactérias e outros.( Unschuld, 1985:p. 7)

Na verdade o objeto de estudo desta pesquisa neste momento é a mudança de paradigmas que se iniciou na Medicina Chinesa no final da dinastia Zhou, no chamado “Estados Combatentes” ( 480 a 221 A .C.)e nas dinastias subseqüentes. A Partir do século V A.C. surge uma escola dentro da Medicina Chinesa que propõe uma explicação diferente para o processo saúde/doença, que estava baseado em fenômenos sobrenaturais da medicina mágico-demonológica: Esta escola revolucionária foi a medicina de correspondência sistemática que busca nos fenômenos naturais a explicação para o adoecimento humano.

 

      No seu livro Fundamentos da Medicina Chinesa, Giovanni Maciocia, afirma:

“A escola filosófica que desenvolveu a teoria do Yin e Yang ao seu mais alto nível é chamada de Escola Yin-yang. Muitas escolas de pensamento surgiram durante o período de guerra entre os estados ( 476 a 221  A C.) e a escola Yin-Yang foi uma delas. Dedicava-se ao estudo do Yin-Yang e dos Cinco Elementos e seu principal expoente foi Zou Yan ( 350 a 270 A C.). Esta escola é chamada algumas vezes de Escola Naturalista uma vez que interpreta a natureza de modo positivo, além de utilizar leis naturais a fim de obter vantagens para o homem, não por meio da submissão e controle da mesma ( como acontece na ciência ocidental moderna), mas agindo em harmonia com as suas leis. Esta  escola representa uma tendência a qual podemos atualmente chamar de ciência naturalista, e as teorias do Yin-Yang e dos Cinco Elementos servem para interpretar o fenômeno natural, incluindo o organismo humano, tanto na saúde como nas patologias”.(Maciocia, 1996:p. 2)

 

     O paradigma de correspondências pode ser aplicado tanto para a correspondência mágica como para a correspondência sistemática. Aquele  que melhor explicou isto foi o famoso sinólogo alemão Paul Unschuld:

O paradigma de correspondências combina dois conjuntos de conceitos pelos quais as relações conceituais próximas justificam a designação comum. Estes são os conceitos da correspondência mágica e os conceitos da correspondência sistemática. Ambos são baseados no mesmo principio, nominalmente que o fenômeno do mundo visível e invisível permanecem em dependência mútua através da sua associação com certas linhas de correspondência. O paradigma de correspondência afirma que a manipulação de um elemento em uma linha especifica de correspondência pode influenciar outros elementos da mesma linha. As linhas de correspondência mágica são usualmente separadas umas das outras e não podem exercer influencia sistemática mútua. Na ciência de correspondência sistemática, entretanto, os conceitos mágicos foram refinados e combinados com os elementos da doutrina do Yin-Yang e com a teoria das Cinco Fases e todas as linhas de correspondências foram integradas em um sistema detalhado de correspondência mutua.” (Unschuld, 1985: 52)

 

No  final da dinastia Zhou haviam 2 tendencias que dominavam o  pensamento mëdico da época : a correspondência mágica e a correspondência sistemática. Dentro da correspondência mágica podemos apontar 2 linhas distintas:

 

  1. A mágica de contato: onde o contato ou a união precedente entre 2 elementos , cria uma relação na qual a manipulação de um dos elementos, que estão agora separados, produz um efeito visível sobre o outro.
  2. A mágica homeopática: está baseada no principio que semelhantes correspondem ou influenciam semelhantes. Acredita-se aqui que o prejuízo ou lesões feitas sobre a imagem de uma pessoa pode resultar em danos verdadeiros nesta pessoa. Dentro desta tendência alimentar-se de nozes, por exemplo, é benéfico ao cérebro pois as nozes têm uma forma semelhante ao cérebro.

     No Livro denominado “Clássico das Montanhas e dos Mares” ( Shan-hai Ching), que foi compilado entre o século VIII e I a. C. demonstra como pode-se transportar os conceitos da mágica homeopática para os processos fisiológicos

“Existe uma planta lá … que não produz frutos. É chamada Ku Jung. Aqueles que a consumirem não terão filhos. Existe um animal lá que a aparência lembra a do gato selvagem… Ele combina ambos os sexos: masculino feminino. Aquele que o consumir  não terá ciúmes.”(Unschuld, 1985: p. 53)

A mudança de paradigma de uma medicina mágico-demonológica para um sistema baseado em uma correspondência sistemática como as teorias das 5 Fases ou Elementos,

Wu Xing em mandarim, e do Yin-Yang não está bem esclarecida pois faltam documentos suficientes, nas antigas fontes chinesas, para permitir uma identificação fidedigna desta transformação. Paul Unschuld coloca a possibilidade de uma influencia originária de algum lugar ao ocidente da China. As idéias podem ser transmitidas e assimiladas mas muitas vezes transformadas e adaptadas pela nova cultura e língua daquela região que recebeu o novo pensamento.

 

“ A possibilidade de um estimulo estrangeiro não pode ser excluída. É comumente aceito que o desenvolvimento da filosofia grega, isto é, o passo do “mythos” para  “logo” originou-se de influencias antigas de algum outro centro cultural a leste. Os filósofos gregos pegaram aquilo que eles aprenderam de fora, desenvolveram e deram a isto uma aparência grega. Eles não se envergonharam de terem assimilados  pensamentos externos; pelo contrário, eles se orgulharam de terem refinado aquilo que foi trazido a eles em um estado rudimentar. Cerca de 2 séculos mais tarde , um desenvolvimento similar ocorreu na China e as doutrinas conceitualizadas pelos filósofos chineses eram tão inovadoras na historia intelectual chinesa quanto as idéias de Anaximander, Empédocles e Demócrito foram na Grécia. Um impulso filosófico pode ter surgido de uma fonte desconhecida em algum lugar entre a Grécia e a China, carregado pela sua força revolucionária, nunca embora tenha preenchido, o vazio prévio, na sua forma original mas para ser sempre moldada e para ser adaptada as condições locais, correspondendo ao desenvolvimento intelectual local.” (Unschuld, 1985: 54 e 55)

 

Jagadis Chandra Bose, cientista indiano, educado em Cambridge no inicio do século XX declarou durante a inauguração do Instituto Bose, centro de pesquisas em Calcutá:

 

“Alem disto, desejo que as oportunidades oferecidas por este Instituto sejam postas ao alcance, tanto quanto possível, de pesquisadores de todos os países. Quanto a isto esforço-me para levar avante as tradições de meu país. Há vinte e cinco séculos atrás a Índia acolhia, em suas antigas Universidades de Nalanda e Taxila, estudiosos de todas as partes do mundo.” (Bose, em Yogananda, 1981:p. 76)

 

Asha Dhar, M.A., em Indian Review, Madras, citado em Self-Realization Magazine, setembro de 1953 afirma:

 

“ A cidade universitária de Taxila era o centro predileto de especialização procurado pelos estudiosos gregos da antiguidade. Muitos gregos passaram a morar na Índia e adotaram o hinduismo e o budismo. A doutrina da reencarnação de Pitágoras tem indubitavelmente origem hindu. Diz-se que Platão, grande admirador da escola pitagórica, em viagem aos países asiáticos, visitou a Pérsia e demorou-se na Índia; seu pensamento reflete a filosofia Shankya; sua tese “A Republica” reafirma idéias hindus; sua divisão da sociedade em corporações nada mais é que o sistema de castas hindu. Max Muller sustentou a surpreendente semelhança entre a linguagem de Platão e a dos Upanishads. Platino revela grande influencia do pensamento Shankya e da concepção budista do nirvana. As fábulas de Esopo são a versão grega das estórias do Panchatantra, a mais velha coleção de fabulas e contos folclóricos da India, levada a terras distantes por marinheiros e mercadores. As Mil e uma Noites e Sinbad, o marujo são versões árabes das estórias maravilhosas hindus. No ano 60 da era cristã, estudiosos chineses iam aprender na famosa Universidade Nalanda, em Bengala, alem de medicina, ciência farmacêutica e astronomia, tambem pintura musica e artesanato.”(Dhar, em Yogananda, 1981:p. 76)

Podemos colocar a hipótese que Dhar e Bose estejam lançando uma luz na afirmação de  Unschuld de que possivelmente uma influencia externa tenha sido a mola propulsora no desenvolvimento do pensamento chinês que levou a formulação da medicina de correspondência sistemática  .” O impulso filosófico que pode ter surgido de uma fonte desconhecida entre a Grécia e a China” segundo Unschuld, seria possivelmente o sul da Ásia ou mais precisamente o sub-continente indiano. Onde existia uma civilização, mais antiga que a chinesa, que teve importante influencia no pensamento filosófico asiático através do hinduísmo e seu filho o budismo.

 

Prof. Dr. Aderson Moreira da Rocha

Médico de família, reumatologista, especialista em acupuntura pela Associação Médica Brasileira e especialista em Ayurveda pelo Arya Vaidya Pharmacy e Associação Brasileira de Ayurveda. Mestre e doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.